Sonho

Sonhei que me afundava nos braços da morte...

Não sei quanto tempo durou a quietude...

Mas sei que este foi o único sonho bom que tive até hoje,

Desde o dia em que soube que os sonhos tinham acabado...

Almas perdidas...

Porque todos perdemos algo ou alguém que nos ajudou a crescer...


Professora Fernanda Azevedo Castelo


Quando me sentei em frente do computador à procura de algumas ideias e algumas frases que, depois de devidamente posicionadas, dariam um pequeno texto para publicar no meu blog, começou a cair do céu uma chuva diluviana. Fosse o barulho da chuva ou algum cansaço do adiantado da hora a verdade é que, à ideia, apenas me vinham imagens de infância: quatro ou cinco pequenitos e pequenitas de galochas, capuchas pelas costas a proteger a sacola dos livros e o saquito da merenda, caminhando pelo empedrado da longa e íngreme calçada que levava à Escola. À sua frente seguia uma senhora magra, de ar austero, caminhando com passos largos e firmes. A chuva era fria… Um pouco mais à frente, à porta de casa, esfregando as mãos, outro pequeno esperava pelo grupo que desafiava a invernia. De porta em porta em breve o grupo era de dez ou onze. À chegada todos diziam: - Bom dia, minha senhora! E lá se continuava a subida em silêncio, arfando de cansaço, fumegando pela boca e pelas narinas.

Lá em cima, no alto, ficava a Escola, branca e rectangular, de chaminé já fumegante. Chegavam, finalmente! A Senhora abria a porta, pousava a maleta, sentava-se e, um a um, os pequenos tiravam as galochas.

De seguida, vinha o ritual de Inverno. Ao pé do fogão que a “cantineira” já acendera, cerca de uma dúzia de pares de pantufas aquecidas esperava. Que bom era aquele calor e que meigas eram as mãos da Senhora que, carinhosamente, pegava nelas para ajudar a calçar os pés enregelados das crianças.

Aquele gesto aquecia os pés e a alma da pequenada. Depois, vinha o trabalho à boa maneira antiga: ardósia, pena, aparo e, claro o inevitável mata-borrão.

Mais borrão menos borrão, maia puxão de orelhas menos puxão de orelhas a semana acabava depressa e, ao sábado, lá estavam todos em casa da Professora: ouviam-se histórias que ela contava tão bem! Liam-se os livros que ela tinha na sala e que nos incentivava a ler! Comia-se um maravilhoso pão com marmelada que ela oferecia a meio da tarde!
Foi já há alguns anos e, falo agora nisto porquê? Porque aquela Professora magra e austera marcou-me pelo interesse que tinha pelo que fazia, pelas crianças que ensinava, em suma, pela Escola.

Gostaria bem que ela pudesse olhar para nós com grande orgulho, pelo que hoje fazemos.

Tal como os homens, as escolas não se medem aos palmos. E isto porque a Senhora nos ensinou que acima de tudo, devemos aceitar a ideia que os homens podem acreditar em coisas diferentes e, mesmo assim, respeitarem-se mutuamente e contribuírem para o bem comum. Porque ela nos fez acreditar que a educação é uma forma de pensar acerca das propostas que o homem escolhe para viver e das práticas que deve seguir para atingir os seus ideais e, por isso, ela está para além da Escola em si mesma, no trabalho de todos, nas críticas construtivas, nas ajudas espontâneas e desinteressadas e, sobretudo, no interesse genuíno pelas coisas!

Porque acredito numa Escola humanista e que há valores que não podemos deixar que desapareçam…

Obrigada, minha Senhora!




Serões   

Recuperar o passado é materialmente impossível. Os gestos, os odores, os sons e tantas outras sensações do passado perdem-se irremediavelmente no tempo...
Mas, a quantos de nós já não aconteceu um desses momentos mágicos em que, encalhados no tempo, nos perdemos nostalgicamente numa qualquer memória do passado?
- Uma brisa que lembra a frescura das sombras de um qualquer caminho campestre, no pino do Verão...
- O marulhar das águas de um ribeiro na quietude de uma noite enluarada...
-O despertar magnífico dos campos orvalhados...
- Uma chiadeira distante de um carro de bois...
- O odor do centeio a amadurecer nos campos...
- O cheiro da terra seca, repentinamente salpicada por uma chuvita perdida na secura do Verão... e tantos, tantos outros momentos que contribuiram para formar a nossa personalidade.
Um desses momentos que mais nitidamente conservo guardado nos recantos da memória era o serão.
Recordo a minha bisavó, velhinha, com a sua voz mansa, pedindo silêncio porque se ía dar Graças a Deus...e, num murmúrio, dizíamos breves orações de agradecimento por mais um dia bem ou mal passado! Até o cão, companheiro de brincadeira, acalmava e escutava, olhando o vermelho do fogo que crepitava.
Depois, enquanto as mulheres faziam tiras ou fiavam o linho ou a lã, os mais pequenos faziam jogos. Com um pauzito, queriam à viva força mexer nas brasas e logo a avó dizia: - Logo mijas na cama! Contudo, eram tão belos os riscos que a ponta do pauzito, em brasa, traçava na semi-obscuridade do canto da lareira!
Para nos distrair o meu avô dizia: - Sentem-se aqui que eu conto uma história que me aconteceu um dia. E, então, lá vinha um conto que contado como verdadeiro tinha laivos de lenda, de bruxarias e encantamentos de fadas. Que, verdade seja dita, aconteceram muitas coisas a estes maravilhosos seres que eram os nossos avós ou, então, que imaginação tão fértil eles tinham!... Nós, vivendo inconscientemente esses grandes momentos de transmissão de cultura, espantávamo-nos, assustávamo-nos, ríamos e batíamos as palmas quando era preciso...
Depois, a mãe perguntava: - Querem castanhas assadas? Querem broa com mel? E nós que sim, que sim...
Entretanto o avô e a avó entravam em litígio por causa da posição de uma das achas da fogueira e, para acalmar os ânimos e, também para chamar o João Pestana, (que eu, na minha inocência, acreditava estar a vigiar-me pela trapeira, por detrás de uma trave do forro negro de fumo da cozinha), a minha mãe começava a cantar! Que maravilha! E, os olhos fechavam-se devagarinho ao som daquela melodia...
Eram então horas de: - A sua benção meu avô! A sua benção minha madrinha! A sua benção minha mãe! E, todos em coro: - Deus t'abençoe minha filha... P'rá caminha que se faz tarde!
E, a cama cheirava a roupa corada nos lameirões do rio e aos campos de centeio do último Verão porque o colchão tinha estado ao sol e o colmo tinha sido bem mexido antes de fazer a cama.
Que ficariam os adultos a fazer? Por entre a porta entreaberta ouviam-se conversas sussurradas sobre os trabalhos do campo, um ou outro comentário sobre um qualquer acontecimento que abalara a rotina da aldeia. Que, falar dos outros é uma obrigação! Lá diziam as velhotas da minha terra sentadas ao soalheiro.
Depois caía o silêncio...os olhares perdiam-se nas chamas do fogo, também ele já dormente, construindo sonhos, esperanças de melhores dias...Lá fora o vento levantara-se e a chuva começava a açoitar os ramos do velho loureiro que gemia... Encalhava-se no tempo e eu adormecia....